sábado, 3 de fevereiro de 2018

NORMA-ORIGEM E NORMA-DERIVADA: O QUE É?



É sabido que o ordenamento jurídico corresponde ao conjunto das normas jurídicas (normas e princípios) de um país. Por outro lado, também é de conhecimento de todos que em seu interior as normas não estão dispostas ao acaso. Pelo contrário. O próprio ordenamento pressupõe a disposição de suas normas de maneira organizada, sistemática, daí, inclusive, o termo “ordenamento”, significando algo ordenado, isto é, disposto segundo uma ordem. Portanto, as normas que compõe um ordenamento jurídico não são dispostas a  esmo, de qualquer jeito. Elas seguem uma organização, uma disposição, de tal maneira que uma se compatibiliza com as demais formando um todo harmonizado.

Por sua vez, é imperioso destacar também que cada norma representa uma função no ordenamento jurídico. Não nos referimos propriamente à função de legislar sobre determinada matéria (direito financeiro, direito do trabalho, direito civil, etc.). Referimo-nos ao aspecto funcional mesmo de cada norma jurídica, isto é, à sua funcionalidade enquanto umas em relação às outras.  Nesse particular, ganha especial relevância a classificação das normas nos ordenamentos jurídicos e, dentro dessa classificação, merece acolhida a propositura do Prof. Tércio Sampaio Ferraz Júnior[1], construída a partir de critérios gerais sintáticos, semânticos e pragmáticos. Dentre esses critérios, é oportuna a classificação normativa de natureza sintática por levar em conta a comparabilidade entre as normas, tendo em vista justamente a função que cada uma desempenha no ordenamento jurídico.

Na classificação normativa de natureza sintática existe aquela que classifica as normas do ordenamento jurídico levando em consideração o aspecto da subordinação  entre as normas. Nessa modalidade classificatória distinguem-se as normas-origem e as normas-derivadas. Conforme as respectivas nomenclaturas fazem referência, as primeiras são a base das últimas enquanto estas decorrem das primeiras. Há uma certa dependência entre as duas categorias de normas. Na verdade, segundo o Prof. Tércio Júnior, há uma relação hierárquica entre ambas: as normas-origem são superiores às normas-derivadas. Em consequência dessa hierarquização as normas-derivadas não podem contrariar sua norma-origem, sob pena de serem consideradas inválidas.

No embate entre o Direito Material e o Direito Processual essa forma de pensar o Direito é muito útil.

Já é pacífico na Doutrina o fato de o Direito Processual funcionar como instrumento do Direito Material. Em última análise, a norma processual realiza a norma material, fazendo-a valer, na prática. Na verdade, o que há entre ambos é uma relação de completude. A regra processual completa a regra material formando um todo harmônico. Nessa forma de pensar o Direito, conquanto sejam ramos distintos da Ciência Jurídica, não há como negar o caráter derivado do Direito Processual. Gonçalves Marcus Vinícius Rios[2] já disse uma vez que “Os esforços dedicados à conquista da autonomia do processo civil levaram ao surgimento da ciência processual, ramo independente do direito. Mas alguns institutos de direito processual só são compreensíveis quando examinados à luz da relação que deve haver entre o processo e o direito material. É o caso, por exemplo, da ação e de suas condições. É impossível examinar a legitimidade ad causam dos litigantes, sem referência ao direito material alegado (grifamos).

Recorramos ao Instituto da curatela para melhor Ilustrar o que foi dito.

O Código Civil prevê o Instituto nos incisos I e II de seu art. 1.728, reconhecendo o Direito. Por sua vez, o Código de Processo Civil dispõe sobre os limites em que o Instituto poderá ser usufruído e como isso se dará. É a hipótese da tutela provisória de urgência (inciso I, parágrafo único, do art. 9º) que a norma processualística impede que sofra a  incidência da regra contida na norma cabeça[3] do mesmo dispositivo.

Portanto, de acordo com a classificação proposta, o Direito Processual é essencialmente uma norma-derivada enquanto o conteúdo do Direito Material é marcado por características de uma norma-origem. É bem verdade, porém, que não há exclusividade dessas matizes em cada um dos ramos apontados. Em outras palavras, aqui ou ali iremos encontrar elementos no Direito Processual que são mais de índole material que propriamente processual. O inverso também é verdadeiro no tocante ao Direito Material. Conquanto não perca suas características de norma-origem, vez ou outra alberga, em seu interior, distintivos  próprios do Direito Processual. Eu diria que a questão é mais de prevalência – e não de exclusividade - de uns elementos sobre os outros.

Cada um dos ramos mencionados comporta o que a Doutrina Jurídica nominou de Institutos Jurídicos.  Segundo Paulo Nader[4], o Instituto Jurídico é a reunião de normas jurídicas afins, que rege um tipo de relação social ou interesse e que se identifica pelo fim que procura realizar. Ihering chamou-os de corpos jurídicos, para distingui-los de simples matéria jurídica. Exemplo de Institutos Jurídicos no Direito Material seriam o “casamento”, “a posse”, “a falência” e o “domicílio”. Já “mandado de segurança” e “prisão provisória” são Institutos Jurídicos notadamente encontrados nas normas processuais. Nesse sentido, também os recursos previstos na norma processual seriam Institutos Jurídicos (apelação, agravo de instrumento, agravo interno, embargos de declaração, recurso ordinário, recurso especial, recurso extraordinário, agravo em recurso especial ou extraordinário e embargos de divergência). Essa acepção está rigorosamente de acordo com a concepção proposta por Paulo Nader uma vez que os recursos (i) reúnem normas jurídicas afins (o capítulo que trata dos recursos nos códigos e nas leis ocupam compartimentos específicos dentro das normas onde são regulados); (ii) regem um tipo de relação social ou interesse (a relação se põe entre órgão julgador – que procura aplicar a norma jurídica/reapreciar a matéria já julgada  – e o recorrente) e (iii) que se identifica pelo fim que procura realizar (rediscussão e revisão da matéria já julgada). As “simples matérias jurídicas” referidas por Ihering dizem respeito, essencialmente, à operacionalidade dos Institutos Jurídicos. Elas, por assim dizer, colocam os Institutos em movimento, realizando-os no mundo jurídico. Ocupam, portanto, a parte periférica das relações jurídicas – conquanto não menos importante -, à maneira de satélites que orbitam em torno de um corpo celeste. Numa palavra: as matérias jurídicas adjetivam os institutos. É como se fossem normas-sujeito (os institutos) e normas-predicado (as matérias).      

É forçoso concluir, portanto, que há uma relação de dependência entre as matérias e os Institutos Jurídicos. Com efeito, não é razoável pensarmos em Institutos dissociados de suas respectivas matérias; e nem de matérias separadas de seus institutos. Ou seja, um depende do outro. Há também aqui, como outrora apontado na relação dos Direitos Material e Processual, uma relação de completude.  



[1] Professor Titular da Faculdade de Direito da USP.
[2] In Direito processual civil esquematizado-São Paulo: Saraiva,2011, p. 37.
[3] Art. 9o Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.
[4] In Introdução ao Estudo do Direito”, Rio de Janeiro: Forense, 1998, 16ª ed., p. 100.

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